Há algum tempo, a newsletter do Quartz veio com esse link do The Atlantic. A chamada, em uma tradução literal, seria algo como: Meritocracias são lugares horríveis para ser menos do que inteligente. A inteligência não deve ditar o valor de um indivíduo.
Antes de ler a matéria, fui na onda do título, “A guerra contra as pessoas estúpidas”, e já achei incrível, tipo “sim, estamos lutando contra as pessoas estúpidas, elas estão por aí o tempo todo nos atrapalhando”. Mas é exatamente o contrário. É sobre como o mercado de trabalho e a economia estão sendo cruéis com as pessoas “não-inteligentes”. Como o próprio texto afirma, “cada vez mais, a sociedade americana confunde inteligência com valor humano”. Basicamente, o texto aborda a forma como a sociedade americana (e vou estender a discussão para a nossa) é fetichista em relação à inteligência e conquistas acadêmicas. Há um desejo por pessoas com QI alto, altas notas no SAT (o “ENEM dos Estados Unidos”) e, por consequência, “espertas” para absolutamente qualquer função, até mesmo aquelas que não ficaram mais complicadas ao longo dos anos. O texto é longo, de certa forma complexo e traz alguns questionamentos interessantes.
Primeiro, dados os diferentes tipos de inteligência, seja espacial, cinestésica, interpessoal e afins, como você consegue formar pessoas no tipo desejado pelo mercado de trabalho? Depois, como acomodar todo mundo em um cenário onde a automação e os apps estão acabando com os empregos. Saiba que seu emprego está em risco se você dirige veículos para transportar cargas ou é o meio para outras pessoas fazerem compras, reservarem mesas. Só nos Estados Unidos, 15 milhões de vagas irão sumir.
Investimento em treinamento e desenvolvimento das pessoas dentro das empresas seria um caminho, assim como o apoio à educação profissional, que garante qualificação e opção de carreira. (Já falei extensivamente sobre isso nesses posts: Tem talento, mas tem muito trabalho também, 1822 e a educação profissional e Sobre a WorldSkills).
Porém, uma das maneiras mais eficientes de resolver esse problema seria garantir acesso e oportunidade de desenvolvimento para todos, desde a infância. Esta é uma causa nobre, cheia de boas intenções e que, em tese, resolveria parte da dissonância. Mas, antes de entrar na parte acadêmica, passa por dois pontos fundamentais: redução da pobreza e desigualdade social e programas estruturados de educação na primeira infância.
A educação na primeira infância, se feita do jeito certo – e para as crianças pobres quase nunca é – pode, em grande parte, superar quaisquer déficits emocionais e cognitivos que a pobreza e outras circunstâncias impõem nos primeiros anos de vida.
Infelizmente, se estes dois desafios são complicadíssimos de se resolver nos Estados Unidos, o que dizer no Brasil? O teto dos gastos públicos, que congelam investimentos na educação e na saúde por 20 anos e os cortes em programas sociais significarão duas coisas: o aumento da desigualdade social e a piora da educação pública. E aí, um adendo. No domingo assisti ao documentário “O Começo da Vida”, que eu recomendo fortemente, inclusive. Interessante para discutir o papel dos pais e mães nas inúmeras tarefas que envolvem a criação de um bebê. E discute-se a autonomia da criança, o seu acesso à educação, diferentes pontos de vista sobre o seu desenvolvimento. Em determinado momento, percebe-se como a desigualdade social e a pobreza são cruéis com as crianças. Como você garante a educação “do jeito certo” na primeira infância em uma família que não tem acesso a saneamento básico? Ou, como no caso do documentário, como resolver o déficit de uma menina de 10, 12 anos e que cuida dos dois irmãos menores? Crianças em famílias pobres não tem tempo de brincar, não tem tempo de criar um mundo à sua volta. Se elas precisam ser altamente estimuladas entre zero e três anos de idade, é seguro dizer que as crianças pobres já largam com ampla desvantagem em relação às outras.
E enquanto não resolvermos esses problemas estruturais, continuaremos fazendo o de sempre. Na ilusão de que a meritocracia e as oportunidades iguais existem, pescamos as exceções dentro do mar do ensino público e/ou da população pobre e tratamos como o todo. Basta você se esforçar e superar suas dificuldades que tudo se resolve. Não é assim. Enquanto uma criança pobre se destaca, milhares perdem a sua chance, talvez simplesmente porque a chance nunca chegou de fato para elas. Quando cada dólar investido na educação na primeira infância traz sete dólares de retorno para toda a sociedade, talvez a briga contra as pessoas estúpidas tenha que ser, na verdade, a guerra contra a falta de oportunidades e contra a falta de condições básicas. Em médio prazo, essa guerra vai fazer as pessoas menos estúpidas, vai ajudar as universidades na formação correta dos seus alunos e vai ajudar o mercado de trabalho a achar as pessoas “inteligentes” que tanto querem.
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