Esta é uma carta de despedida. Em alguns dias, vamos tomar rumos diferentes. Digo, você continuará onde está, eu estou voltando para Belo Horizonte. Antes de partir, queria escrever algumas palavras sobre a gente.
Nossa história começou em 1994, quando os Almeida Fares Menhem vieram fazer uma excursão. Eu conheci o Playcenter, o Simba Safari, o Parque da Mônica no Shopping Eldorado, o The Waves e lembro de ter ido ao KFC (ou era Dunkin’ Donuts?) em algum lugar da Paulista.
Depois, em 1999, o papai me trouxe para ver o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1. Chegamos no sábado à noite para ficar na casa de um amigo dele no Santa Cecília. Pegamos a chave com o dono do bar no térreo do prédio. No dia seguinte, fomos ao Autódromo de Interlagos. No final, rachamos um táxi até o Aeroporto de Congonhas.
Já morando aqui, eu fui entender a distância de Santa Cecília até Interlagos. É muito maior do que eu sequer poderia imaginar na época.
Em 2003, vim encontrar uns amigos da escola. Fiquei na casa do Tio Ângelo e da Simone na rua Bela Cintra. Fomos almoçar na Liberdade e na minha observação da rua Galvão Bueno soltei um sonoro “nossa, como parece a rua XV lá em Barbacena”. Não tem nada a ver, mas era o meu referencial.
Vim pontualmente entre 2006 e 2008 para trabalhar, comemorar os 30 anos da Bia e o batizado do Hugo.
Foi só em 2010 que, por uma razão profissional, você virou a minha casa. “Topei tentar a sorte” aqui e nos conhecemos melhor.
Foram 14 anos, oito meses e 14 dias de muitas coisas legais. Foram seis casas, seis trabalhos, várias oportunidades de conhecer e fazer coisas que eu jamais imaginaria fazer, e celebrar coisas que talvez fossem difíceis na minha cabeça teimosa de Belo Horizonte.
(Acho que a Ruth Rocha escreveu “Eugênio, o Gênio” pensando em mim.)
Criei meu pequeno universo paulistano caminhando. Seja flanando pelo centro, pelo arredores da Paulista para te conhecer melhor, ou nas atividades do dia a dia. Não raro, saía caminhando de Pinheiros até o trabalho na Berrini, ou de Moema até Pinheiros para fazer Crossfit.
No caminho, prestava atenção nos prédios, nas pessoas, no comércio. Prestava atenção nos pensamentos também. Caminhar por você sempre foi simbólico para quem tinha a absoluta certeza que morreria sem se movimentar, com medo de cortar as raízes de Belo Horizonte.
Falando em raízes, criei algumas improváveis por aqui. Você me apresentou duas turmas muito legais: a do crossfit e da prática de banda. Quero (e vou!) escrever algumas palavras carinhosas sobre essas duas turmas, sobre identificação e pertencimento.
Felizmente, saio bem diferente do que quando cheguei. Cortei as raízes e cortei a narrativa da minha juventude: a certeza absoluta de que era legal e descolado falar que eu seria um ancião (descolado!) na Serra do Curral, com meus pés se confundindo com o minério de ferro.
Topei mudar, e te conhecendo, São Paulo, acabei me conhecendo também. Pegando metrô lotado, confundindo as portas de saída do metrô nas estações, conhecendo os restaurantes, transferindo título de eleitor e carteira de motorista, reclamando do trânsito, conhecendo gente… só resisti bravamente ao hábito de chamar as pessoas pela primeira sílaba do nome.
Foram construções, reconstruções, descobertas e de uma constante lembrança de que precisamos estar sempre em movimento. Decidimos voltar para BH para ficarmos mais perto da família, para poder ter uma rede de apoio, para ficarmos menos isolados. Apesar de tudo, você é uma cidade muito dura nesse sentido.
E eu sei que é difícil ouvir isso, mas não sei dizer se um dia voltaremos. Precisamos viver e acreditar nessa nova fase, feliz, mais acolhedora e “que seja eterna enquanto dure”. Continuaremos nos vendo eventualmente, sabendo que cada reencontro nosso será carinhoso.
O Círculo Musical da Construção de Soluções nasceu de um comentário no Linkedin e é baseado na minha formação, experiência e vivências profissionais e nas minhas vivências como baterista semiprofissional. Tocar com diferentes pessoas e em diferentes situações, me ajudou a criar uma bagagem de recursos diversos relacionados à criatividade, colaboração e aprendizagem que consigo transferir para outros aspectos e cenários.
O objetivo desta série de artigos é detalhar cada um dos quatro elementos que compõem o círculo: Prática, Repertório e Improvisação, além do bônus Silêncio. Vou trazer exemplos da minha jornada, referências e trechos de entrevistas de artistas e dicas para aplicar a “mentalidade musical” na construção de soluções no dia a dia das organizações.
Sobre Prática
Dentro do Círculo Musical, eu entendo que a definição de Prática é “como usar bem o meu instrumento em prol da música e das outras pessoas”, buscando incrementos que facilitam a execução e abrem novas possibilidades para estes ofícios.
Existe uma grande diferença entre tocar sozinho e tocar com outras pessoas, por mais óbvio que isso possa parecer. No olhar da aprendizagem, são duas atividades benéficas e que se retroalimentam. Tocar sozinho é um momento de estudo, de refinamento de técnica, de exploração e experimentos sonoros. Na bateria, você pode fazer isso de diversas formas: tocando junto com uma música, estudando em pads ou no próprio kit, lendo e interpretando partituras, praticando rudimentos…
Tocar em uma banda é a oportunidade para colocarmos os experimentos e estudos em campo. E também um exercício constante de habilidades comuns a qualquer ambiente profissional: empatia, comunicação, negociação, gestão de conflitos, liderança, escuta ativa, criatividade e capacidade de gerar novas ideias, por exemplo.
O primeiro ensaio é um desafio para a pessoa novata, tal qual o primeiro dia na firma. Passei por experiências similares na minha primeira banda e no meu primeiro emprego. No Álamo, eu era o baterista de uma banda de covers do pop rock brasileiro dos anos 1980. Na Lazo, eu transformava arquivos do Photoshop em HTMLs para sites.
07/08/1999. A bateria montada de qualquer jeito no meu quarto.
Em ambos os casos, eu tinha os fundamentos, mas talvez não soubesse a melhor forma para aplicá-los dentro dos respectivos contextos profissionais. No meu mundo das analogias, eu parei de praticar um esporte individual e comecei a jogar um esporte coletivo.
Bandas e organizações são esportes coletivos. E mesmo quando você estiver praticando os fundamentos de um esporte coletivo em casa, emulando sozinho todos os movimentos do jogador e se sentindo confortável com isso, na hora que aparece alguém para jogar junto, tudo muda.
E nas bandas e nas organizações, precisamos entender dinâmicas, rituais, processos, fluxos para conseguirmos fazer um bom trabalho. E é preciso muita orientação e gentileza das pessoas mais experientes com as novatas, para que esse trabalho aconteça de uma forma mais fluida.
E quais são os desafios em uma banda?
Na minha experiência, são quatro coisas fundamentais para termos um bom ambiente para a prática de uma banda: estar em dia com seus fundamentos, repetição, curiosidade e gentileza.
Estar em dia com os seus fundamentos é estudar o instrumento e o repertório da banda, para que as horas de ensaio sejam melhor aproveitadas. Aqui, estabelecer combinados é um passo importante. Se você está ensaiando um repertório novo, então, quantas músicas novas serão tocadas por ensaio? Já toquei com um artista que definia grupos de três músicas. Em sete ensaios, conseguimos passar por todo o repertório e utilizamos os seguintes para passar o show inteiro.
Estudar o instrumento traz novas ideias, torna algumas tarefas mais fáceis e traz segurança para a execução em grupo. E aí entra a repetição.
Repetição. Tocar em uma banda e fazer shows significam executar a mesma coisa incontáveis vezes, mas nem sempre com o mesmo resultado, porque estamos lidando com pessoas no palco e na plateia. Nos ensaios, a repetição gera confiança. No vídeo abaixo, Jennifer Batten, guitarrista em duas turnês do Michael Jackson traz elementos do estudo e da repetição.
Após ser aprovada na audição, a banda ficou um mês ensaiando sozinha, sem a presença de Michael Jackson. No período, havia experimentação e ajustes de sons, momentos para as pessoas se conhecerem e tornarem-se próximas. Somente no segundo mês, Michael apareceu. E a dica do produtor era “se ele gostar do som, vai começar a dançar”. Logo no começo do ensaio, o artista fez alguns passos. E os ensaios seguiram por mais outro mês inteiro.
Segundo Jennifer, as horas de prática ajudaram a banda a manter a compostura diante de estádios lotados. “Essa é uma das lições que digo às pessoas. Nunca senti que estávamos ‘super ensaiados’. Sempre que tínhamos uma oportunidade, estávamos ensaiando”.
O terceiro elemento pra mim é a curiosidade, ou seja, ter abertura às novas ideias, à exploração e às observações das pessoas que estão tocando conosco. Isso significa uma lista de coisas:
Ouvir, estudar e entender os artistas que você gosta e entender como você consegue incorporar elementos em sua prática;
Trocar ideias com outras pessoas que também tocam um instrumento sobre interesses em comum ou conexões inusitadas. Um baterista de jazz e um baterista de heavy metal podem ter mais coisas em comum do que imaginamos. E isso vale para outros segmentos. Em seu livro “Something to Food About“, Ahmir Questlove Thompson, baterista, produtor, diretor e ganhador do Oscar, afirma que músicos e chefs de cozinha trabalham sob os mesmos princípios criativos, mas com nomes diferentes.
Se possível, toque com a maior quantidade de pessoas e a maior quantidade de estilos possíveis. Isso é fundamental na expansão da sua “caixa de ferramentas” de técnicas e das habilidades relacionais e criativas. Transitar entre pop, rock, blues, funk e jazz me ajudou a entender o meu papel nas bandas e como eu posso facilitar o papel das outras pessoas.
Na hora da criação e composição de uma música própria, cabeça aberta para ouvir e dar ideias em um campo aberto de possibilidades.
Finalmente, a gentileza. Nove entre dez músicos profissionais irão afirmar sobre a importância de ser uma boa pessoa. Isso vale no estúdio, no palco, e vale também no escritório, na indústria, em qualquer lugar. Se você é a pessoa mais experiente no espaço, mostre o caminho para que as pessoas menos experientes sintam-se confortáveis para fazer perguntas, dar ideias ou fazer sugestões. A tomada de decisão fica muito mais fácil nesse sentido.
Entender e estabelecer formas de comunicação eficazes e simpáticas com as pessoas é fundamental. Sejam as verbais, na hora de sugerir uma música, correção de rota, opinião sobre uma levada, um solo ou uma letra. Ou as não-verbais: trocas de olhares e sinais com as mãos no meio das músicas. Faça isso com cortesia e firmeza.
Há uns seis ou sete anos, vi o alívio de um baixista novato na minha banda de jazz, quando o professor, percebendo seu desconforto, perguntou gentilmente: “você está entendendo onde estamos na música?”. A resposta, “não”, saiu como um pedido de ajuda e um agradecimento por alguém ter mostrado a direção.
Lembrei também do meu primeiro dia de trabalho, quando o programador mais experiente me pegou praticamente pela mão e disse: “vou te mostrar como fazemos aqui”. Em um lugar onde o onboarding era o famoso “vai, se vira, e faz”.
Afinal, ninguém quer trabalhar (ou tocar) com um sujeito que afirmava por todo o escritório: “o único jeito de fazer as coisas é o meu jeito”. A empresa seguiu, ele ficou pelo meio do caminho.
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Temos muito a explorar ainda dentro do Círculo Musical da Construção de Soluções. Espero que tenham gostado do conteúdo sobre Prática. Adoraria ouvir a opinião de vocês.
No apagar das luzes de 2024, Maria do Porto Cândida de Jesus, 85, foi descansar. Uma vida de labuta, que começou aos seis anos (!) e que ficou restrita à cidade de Belo Horizonte, reflexo da desigualdade baseada no gênero, cor da pele e no recorte sócio-econômico.
Do Porto, ou “Dú”, tinha uma voz de cantora de blues, um humor refinado e uma inteligência acima da média.
Chegou para trabalhar lá em casa há uns 30 anos, por indicação de uma amiga dos meus pais. Na primeira ligação, mamãe ficou confusa com a voz do outro lado da linha. Ouviu “Maria do Porto” e achou que havia falado com o “marido da Do Porto”.
Certa vez, ela fez um pudim de pão e vendo que a pessoas não davam fim nele, escreveu “Aqui jaz o renegado” em um pedacinho de papel.
Em outra, o gato chamado Gato que habitou nossa casa entre 1996 e 2000, voltou de sua excursão na rua com uma rolinha na boca. Ao ver a cena, Do Porto olhou com cara de reprovação e disse “seu perverso”.
Naomi, a Whippet nº. 1, tinha um respeito absurdo pela Do Porto. Num ponto em que ela saia de onde estivesse quando ouvia as palavras mágicas “Naomi, hora do café”. A Dú sofreu com sua partida e eu acho que a Naomi fez uma festa na sua chegada.
Ela ficou devastada quando caiu no golpe do falso sequestro da Natália. “Escuto tanto sobre isso na rádio. Não era pra eu ser enganada”.
E eu, na minha experiência morando sozinho, recorri à ela no dia que fiz arroz pela primeira vez. Liguei, ela me deu as medidas e o passo a passo para o arroz soltinho e foi um sucesso. Sigo as dicas e a receita desde então.
Esse não foi um texto fácil de ser escrito, porque estou falando do ano mais maluco da minha vida. Fiquei tentado em escrever só sobre as coisas ruins, mas seria injusto comigo, com quem me apoia e com quem lê esse espaço. Então, começa meio esquisito, mas depois melhora, eu prometo.
No lado ruim: vou lembrar de 2024 como o ano das recusas e das rejeições. Fui demitido duas vezes, fui recusado em um evento internacional que tenho um carinho tremendo, recebi um “não” silencioso (porém sonoro) e que ainda dói, vi pessoas partindo cedo demais.
Em termos práticos, se eu tivesse cuidado antes da saúde mental, poderia ter evitado a segunda demissão. De resto, não havia nada que eu pudesse fazer – em nenhuma circunstância – para reverter o que aconteceu: não comando orçamentos organizacionais e questões políticas e eu não controlo a natureza.
(Meus sonhos, no entanto, me falam o contrário: tudo está sob minha responsabilidade e não sou bom o suficiente. Em um recente, eu estava parado e uma fila de amigos e familiares passava por mim dizendo que sou legal, mas que preferem a pessoa x ou y para fazer qualquer tarefa.)
Minha cabeça deu ruim em agosto. O burnout foi catalisado por um quadro de depressão que estava deixando em segundo plano, afinal tinha outras prioridades na vida. Quando tomei ação, leia-se ida ao psiquiatra, medicação e volta para a terapia, já era tarde demais do ponto de vista profissional. Lembro de uma reunião específica, talvez uma semana antes do último dia, onde eu não consegui falar uma palavra e não entendia o que estava sendo dito, quase como o Charlie Brown na sala de aula.
Pifei.
E a saúde mental em frangalhos traz uma carreta de sentimentos: raiva, baixa auto-estima, desdém, silêncio, inércia. A vontade era de cavar e morar em um buraco, para dar menos trabalho para quem convive comigo, para não precisar falar dos meus sentimentos e medos. Morar num buraco parece bom para o tempo passar sem que eu lide com a pressão e o peso do mundo. Tenho limitado a minha exposição aos sites de notícias, porque ler as mazelas tem me feito mal.
Em grande parte do ano, me senti uma pessoa, um marido, um pai, um filho, um irmão e um amigo abaixo da crítica.
E fim, o texto poderia acabar aqui. Mas não vai. Afinal, continuei caminhando, “carregando água na peneira“.
Com o apoio da medicação, da terapia e de muita conversa em casa, comecei a entender e transformar algumas coisas. Primeiro, entender que do fundo do buraco, eu não vejo o que está acontecendo aqui em cima. E eu quero estar aqui em cima, compartilhando o que observo e crio. O medo da exposição já não é mais um medo.
Lancei minha loja de fotos, dessa vez pra valer. Tirei outro projeto da cabeça, o “Jam Sessions & Colabs“, um podcast para falar de prática artística. Fiz o que deu em 2024 e estou animado com o ano vindouro. Mesmo não sendo na quantidade e tempo que eu queria, pude participar de algumas edições do podcast “A Voz do Conhecimento“, conhecendo e entrevistando pessoas muito legais.
Tenho escrito mais e aparecido mais por aqui para falar do Samuel, que aos 16 meses de idade, é um rapaz que está descobrindo o mundo, enquanto eu me descubro como pai e registro a construção da nossa relação. E existe uma aura especial na primeira festa de aniversário dos filhos, é impressionante.
Fiz dois shows muito simbólicos esse ano. Em julho, depois de 15 anos, toquei novamente com Rodrigo Borges e Marcelo Bizzotto, meus amigos desde o pré-primário, no aniversário de 70 anos do Geraldo Borges. Fizemos um ensaio de 40 minutos no dia do show e nos apresentamos com toda a confiança do mundo.
E em agosto, junto com Luciano Vieira, André Rosa, Thiago Ceconi, Gustavo Ribeiro e Pedro Almeida, meus amigos da Prática de Banda, fizemos outra linda apresentação. Os ensaios das terças são um momento de desabafo, conexão e expressão.
Artisticamente falando, 2024 foi um ano de nítidas evoluções. Fazia tempo que não percebia isso.
Segundo, estar aqui em cima é falar abertamente sobre saúde mental e meus outros medos, tirando da cabeça e colocando pro mundo os meus sentimentos sobre os temas. E isso também tem a ver com a experiência e o trauma da bolinha de golfe que morava na minha cabeça. Achei que estava tudo resolvido, mas ainda há muito o que falar. A partida do Bruno Guedes me deixou triste, ao passo que me senti reenergizado ao poder compartilhar minha experiência com um rapaz de Pernambuco que passou por um diagnóstico e uma cirurgia muito similares.
Estar aqui em cima é também agradecer e reconhecer a sorte de dividir a vida com a Carol e com a família e os amigos e amigas que tenho. É aprender a me olhar da forma como eles olham para mim. E entender esse carinho e ternura como oportunidade para reconstruir conexões.
O ano de 2025 começa com grandes metas, tipo arrumar um trabalho, e grandes mudanças, inclusive geográficas. Vou caminhar confiante, sem muita pressa. E olhando para 2024 com um olhar de aprendizado, não de derrota. Sem ser ingênuo, e sim realista.
Vamos que vamos.
(Foto feita em dezembro de 2024 no Retiro das Pedras)
Mesmo sendo das Minas Gerais, confesso que ainda me espanto com a solicitude mineira, especialmente quando e onde menos esperamos.
No sábado passado, 22/12, eu, Carol, Samuel e Stella saímos cedo de São Paulo para Belo Horizonte, com o carro entupido de coisas e o coração e a mente também entupidos da vã esperança de encontrar uma Fernão Dias vazia. Ledo engano.
Demoramos cinco horas para andar 150 quilômetros, com muito congestionamento já em Mairiporã. Isso já dava a tônica da viagem. E em determinado momento, já próximos da cidade de Campanha, resolvemos fugir do trânsito da rodovia para entrar na cidade e comprar um remédio para Carol, que estava explodindo de dor de cabeça. O Google Maps havia sugerido um desvio por uma estrada de terra. Em uma bifurcação, peguei a saída da esquerda, tentei enfrentar uma subida enlameada e não consegui. Retornei com cuidado e quando estávamos próximos do asfalto, apareceu o primeiro exemplo da solicitude mineira.
Cruzamos com uma pessoa que morava na região, que me indicou o caminho certo, bastava seguir o guia. Na bifurcação, pegamos a saída da direita, seguindo por uma estrada com mais cascalho. Esperamos ele deixar uma encomenda em uma fazenda e íamos bem até o carro engastalhar em outra subida enlameada. O rapaz ainda saiu do carro, tentou nos sugerir um trajeto, porém infrutífero. Agradecemos a ajuda, mas resolvemos voltar para a rodovia.
No caminho da volta, justamente na porta da fazenda, dei um toquinho no freio e o carro caiu na vala.
Eu e Carol nos permitimos um pequeno momento de “e agora, José?” e decidimos ir até a fazenda pedir ajuda. Era a única chance de sair da vala em tempo hábil.
Andei um pouquinho, me apresentei e expliquei a situação para a turma que trabalhava lá. Eles estavam abrindo um porco para fazer um churrasco e a ceia de natal, ou seja, ainda atrapalhei a tarde do sábado.
Na hora, Marcelo, um dos funcionários, se prontificou a ajudar. Entramos na Toyota Hilux da fazenda e voltamos ao ponto onde Carol, Samuel e Stella estavam. Carol assume o volante, amarramos uma corda, Marcelo tenta puxar com a Hilux e o único avanço é na corda, que arrebenta.
“Peraí que vou buscar o trator”, disse Marcelo, embarcando na caminhonete e sumindo da vista. Minutos depois, apareceu a bordo de um trator vermelho, que me fez lembrar do veículo que o vovô Pancho tinha em Arantina.
A própria chegada do trator parecia cena de filme: aparecendo no horizonte, com o reflexo do sol no vidro. Faltou só uma trilha sonora para tudo ficar completo. E tal qual um O fato é que com uma cinta de reboque e o mínimo esforço do trator, nosso carro saiu da vala e pudemos seguir viagem.
Pra nós, era imperativo poder recompensar o esforço do Marcelo de alguma forma. E ele negou de forma enfática. “Fiquem em paz, aproveitem a família e o final de ano. Sigam com Deus“. Foi bonito e foi um alívio para o resto da viagem, que só terminou no dia seguinte. Acabamos passando a noite em Três Corações.
Descrente como estou com a raça humana e nossa capacidade empática, a atitude do primeiro motorista e a disponibilidade do Marcelo serviram como uma gentil lembrança para ainda acreditarmos em nós enquanto espécie. 🙂
Esta imagem nasceu a partir do comentário que deixei no Linkedin de um ex-colega de trabalho sobre preparo e resiliência para a resolução de problemas. Transpus para o papel e depois para o computador, mostrei para parte do meu conselho consultivo – Carol Brant, Paula Basques, Eduardo Loureiro, Ricardo Ponsirenas e Diego Mancini – e acolhi as observações. Saiu isso aqui:
Círculo Musical da Construção de Soluções
Por que a experiência de tocar em uma banda é importante?
Prática + Repertório = Saber Improvisar. Pode ser a capacidade de resolver o problema com os recursos disponíveis, ou como em um solo, pegar um outro caminho e depois voltar para a estrada principal.
Repertório + Improvisação = Aperfeiçoamento da Prática. Ser melhor naquilo que fazemos todos os dias.
Saber Improvisar + Prática = Criação de Repertório. Aumentar a caixa de ferramentas e soluções, seja para o dia a dia, seja para gerar inovação.
Publiquei no LinkedIn, fiquei feliz com a velocidade que a ideia saiu da cabeça e ganhou “vida”. Porém, minutos depois que publiquei, recebi uma uma observação muito importante do Diego via whatsapp. Copio abaixo, com uma pequena edição de texto.
Sobre essa imagem acima, o meu tripé seria: prática – repertório/improviso – silêncio.
Saber improvisar e repertório são a mesma coisa, na minha cabeça, pelo menos. Você só improvisa se tem repertório.
E o silêncio pra mim é aquela diferença entre ouvir e escutar. Saber a hora de calar a boca é fundamental na música e na vida.
Quando você escuta, isso é treinamento auditivo, ou seja, prática. Além disso, te dá repertório, o que significa improviso. E escutar te ajuda a situar o que pode ser usado da prática. Então entra nessa retroalimentação que você falou.
Fiquei pensando sobre essa observação e pensando que os dois tripés fazem sentido, se alternam e se modificam ao longo da nossa jornada.
Também fiquei pensando no detalhamento de cada um desses itens. Em breve.
Outro dia, Tito leu algo como “Não se preocupe em queimar pontes, decisões irreversíveis tendem a ser mais satisfatórias, porque agora há apenas um caminho a percorrer: aquele em direção à decisão tomada”. Parecia fazer sentido à decisão tomada anos antes: eliminar algo descoberto por acaso, que dormia e acordava com ele. De maneira sorrateira, um dia resolveu aparecer.
De certa forma, a outra opção era esperar a ponte ser queimada antes da sua chegada, de modo que a toda a sua boa vida de cortesia, de sorrisos e afagos sinceros mas que escondiam dores e angústias, acabariam ali.
E por isso, parar ou a ideia de parar, fez Tito continuar, passar a ponte e depois queimá-la. Isso resolveria um problemão, isso seria a garantia de que tudo ficaria joia, certo e garantido no futuro.
Sua aposta, aliás, seria errado dizer aposta… sua decisão quase passiva de atravessar e queimar deu meio certo. O problemão foi resolvido, mas o futuro (ou o presente) é (são) tão incerto(s), que as dores e as angústias persistem. Ou se amplificam, quando Tito pensa em quanto tempo resta, o que pode ser feito na vida, como prover e retribuir todo o carinho que recebe.
Ninguém tem essas respostas, na real. E poucas pessoas podem viver essa vida “de fronteira”, experimentar – a contragosto – a ideia do rompimento da continuidade da vida, ser de antes e de agora, olhar pra trás estando (ou querendo estar) à frente. Muitas vezes, um estrangeiro no próprio tempo. À época, Tito achou que já havia falado tudo o que era possível sobre a ponte queimada.
(ou como fiz a reunião de duas das minhas “mad skills“*.)
Há alguns dias, eu compartilhei no Instagram e com alguns amigos uma experiência que eu fiz com a minha bateria. Creio que vale a pena trazer para a perenidade do blog, fugindo da efemeridade de um Instagram.
Em setembro de 2020, num processo para aprender um pouco mais sobre marcenaria, fiz um suporte para transformar o surdo de 16 polegadas da minha bateria em um bumbo. Uma breve explicação: em um kit de bateria, o surdo é o tambor que usualmente fica no lado oposto da caixa e do chimbal. O bumbo é o maior tambor do kit que é tocado com um pedal, veja a imagem abaixo.
Uma explicação das peças e meu ponto de vista no kit de bateria | Foto: Arquivo pessoal.
Fiz isso por alguns motivos: ter um bumbo menor para diferentes oportunidades; explorar um kit minimalista (minha inspiração é a música “Introducing the Fearless Flyers” com o Nate Smith na bateria) e, por último, no mundo fechado que vivia durante a pandemia, na divisa entre Itabirito e Nova Lima, aproveitar a oficina do João Lacerda para aprender marcenaria**.
Uma premissa era criar algo que fosse fácil de ser montado, desmontado e transportado. O principal ponto de um kit menor é que ele seja mais portátil do que um kit convencional. (Quando morava em Belo Horizonte, eu tinha uma logística refinada para colocar a minha bateria dentro do Fiat Palio da residência).
Outra premissa era utilizar somente os materiais disponíveis na oficina naquele momento: uma chapa de MDF, barras roscadas, porcas, dobradiças e espumas. E aí comecei a aventura em meio às serras e lixas.
Para fazer o encaixe, eu medi a distância entre duas das canoas de afinação do tambor, fiz o corte em curva seguindo a circunferência. Em seguida, cortei na altura onde o batedor do meu pedal ficasse centralizado no tambor. Coloquei as espumas para diminuir o atrito entre o tambor e o suporte e também para dar mais firmeza entre o suporte e o pedal. Cortei as barras roscadas seguindo a altura (ou comprimento) do tambor para unir as peças de modo que qualquer pessoa consiga montar. O modelo final foi esse.
Ideia geral do suporte.
Corte para encaixe.
Barras roscadas e porcas utilizadas para unir as peças e dar suporte.
Medida da altura do batedor do pedal.
Mockup pronto e com o suporte original como referência.
Peça final.
Fiquei satisfeito com o resultado. No processo, ganhei mais familiaridade com algumas ferramentas: a serra circular para grandes cortes, a serra tico-tico para as curvas e a tupia para alguns detalhes e acabamentos.
Cheguei a testar uma vez quando voltei para São Paulo. Toquei na sala de casa, no menor volume possível e com a pele e a afinação erradas. A ideia funcionava.
Faltava testar “em campo”. Fiz isso recentemente, no último ensaio do ano da minha prática de banda. Com uma pele mais grossa e um sonex (material para tratamento acústico) dentro do tambor, consegui um som muito bom, comparável aos bumbos maiores. Na ocasião, encaixei o tambor de qualquer maneira no canto do kit.
E nessa execução de “Windows”, música do finado pianista Chick Corea, dá para ouvir o bom som do tambor e como o suporte manteve tudo no lugar. Aproveitem os belos solos do baixista Luciano Vieira e do guitarrista Thiago Ceconi.
Estou ansioso para usar esse suporte e esse kit em uma situação mais intimista, um palco pequeno, só para diversão. Ou em uma vindoura edição do “Improviso para Não Músicos”, o workshop que criei com o Diego Mancini sobre jazz, criatividade, improviso e liderança.
Naturalmente, também feliz em colocar a mão na massa, juntar dois hobbies e tirar uma ideia do papel.
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* A Forbes define mad skills como: “‘habilidades “incríveis’ ou ‘fora de série’, em português, que envolvem hobbies ou interesses pessoais e que fazem um profissional ser diferente e especial”. Gosto de pensar que “curiosidade” e “criatividade” impulsionam esses hobbies e interesses.
** Já posso colocar no meu currículo: fiz bandejas, tábuas de queijos, móveis e agora, instrumentos musicais.
Com 36 dias de paternidade, eu achava que a definição de “tarefa complexa” era colocar o Samuel para dormir. Era uma “tarefa complexa” no nível “possível de ser usada como exemplo em palestras e facilitações”.
À época, escrevi: “É um misto de arte, improviso, racionalidade e lógica. Ao mesmo tempo, você nunca está necessariamente preparado para lidar com as infinitas possibilidades e desafios para a personalização do sono”. Não estava e não estou errado.
(Relembrando: Tarefas complexas não podem ser concluídas seguindo uma receita, um conjunto de instruções ou mesmo uma lista extensa de regras e regulamentos.)
Agora, no dia 476, estou mais acostumado com a tarefa acima e explorando a próxima fronteira da complexidade: entender e responder à gama de reações, formações e expressões de sentimentos de um rapaz de 15 meses de idade. A famosa regulação emocional, onde o Samuel está aprendendo a lidar com suas emoções básicas, é também um convite para nós, adultos, revisitarmos como lidamos com as nossas emoções e reações.
Porque perder a paciência (e a razão) é fácil quando somos “provocados”. Seja numa reunião de trabalho, em uma discussão ou em uma birra. Com a diferença que na birra, a criança não te provocou conscientemente, por isso as aspas. E de novo, é fácil e tentador responder a birra com birra. E o meu cansaço/sono/dilemas da vida adulta podem ser catalisadores dessa resposta, mas isso não vai ajudar ou resolver o problema.
O desafio é praticar a calma e o estado zen em meio ao caos, seja ele causado pelo sono (complexidade em cima de complexidade), por algum incômodo onde a única forma de comunicação é o choro, ou simplesmente porque a curiosidade e a criatividade do neném foram tolhidas.
Nesse ponto, aprendo bastante com a Carol e suas frases. “Filho, eu sei que você está frustrado, mas é preciso comer”, “Samuel, não vamos fazer isso agora”, “Sei que você quer entrar aí, mas é perigoso pra você”. No médio e longo prazo vai valer a pena. 🙂
É cansativo? É. Dá trabalho? Com certeza. Mas penso que faz mais sentido curtir e aprender com a complexidade atual, ao invés de querer descobrir ou prever qual será a próxima nesse marzão de surpresas chamada parentalidade.
PS: esse texto saiu com relativa facilidade porque experimentei o método descrito pela Lindy Elkins-Tanton em seu artigo “Getting Over Procrastination and Making Joyful Progress on Your Project“ (“Superando a Procrastinação e Fazendo Progresso Prazeroso no Seu Projeto”). Os 10 minutos de escrita foram sem amarras, edições ou julgamentos. Ajustei e repeti. Deu certo.
Há alguns dias, estive em Brasília acompanhando uma reunião de formadores do SESI. No meio da reunião, fui surpreendido por um poema do Manoel de Barros: “O menino que carregava água na peneira“. É ele falando sobre ele mesmo e também sobre criar, sobre imaginar e sobre escrever.
(…)
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
(…)
Fui surpreendido porque não esperava que Manoel aparecesse ali, de maneira tão sensível em uma formação. Ele tem aparecido bem mais na minha terapia ao ponto de eu comentar com a Fátima, minha psicóloga, que vou abrir uma espacinho para ele junto do Prince, do Gilberto Gil e do Dave Matthews no final da frase “para todas as coisas”.
Na hora que ouvi o poema e vi a reação das pessoas, meus olhos ficaram que nem estão agora: marejados. Olhei pra mim também, porque estou tentando carregar mais água na peneira. Estou fazendo isso como uma descoberta, como um processo de cura.
Cura da depressão, se me permitem a licença poética. Cura dos pensamentos horríveis que ocupam a minha cabeça toda vez que leio as notícias, ou quando percebo o quanto maluco tem sido o meu ano de 2024, ou quando entro na corrida imaginária da comparação.
Preciso escrever e criar mais. Parar com os arroubos de autodepreciação – “fui formalmente treinado para isso”- quando alguém me diz que gostou de um texto. O “obrigado” funciona na medida. Porém, fazer essa escrita com mais intenção.
Criei esse blog há 22 anos, muito inspirado por pessoas incríveis que trabalhavam comigo e que eu achava o máximo. Virou meu depósito de registros na transição da adolescência para a vida adulta. Porém, relendo alguns textos bem antigos, eu não tenho a menor ideia do que eu estava falando. Por que esse medo todo de expor os sentimentos?
Carregar água na peneira é também organizar e expressar os sentimentos de uma melhor forma. Um dia, eu vou ler o que escrevi há 20 anos e vai ser legal saber que eu estava lutando contra uma depressão pesada e venci. Sem precisar ficar pensando se estava chorando um coração partido ou era só uma forma bizarra de escrever ficção.
É espalhar as coisas da cabeça nos espaços vazios do caderno, tal qual a água quando passa pelas tramas. Sentir, dar espaço para o novo e tentar achar alguma paz no meio do turbilhão dos dilemas, despropósitos e peraltagens.