Outro dia, a Carol me mandou este post da Misty Copeland contando sobre a primeira vez que dançou em um show do Prince. Misty é a bailarina principal do American Ballet Theater, uma das principais companhias de balé clássico do mundo. O Prince foi o Prince, um dos músicos mais completos, criativos e disruptivos da nossa era.
Misty conta que chegou em Nice (França) sem coreografia, sem ensaios, sem planos. Só tinha uma lista de músicas e uma orientação: “você vai abrir o show”. Subiu ao palco, começou a dançar e viu uma plateia sair do silêncio para a excitação. Em seu texto, ela diz que as pessoas ficaram empolgadas ao verem Prince no palco. A caixa de comentários diz o contrário, a excitação era por ela.
Abaixo, uma apresentação dos dois no programa Live on Lopez Tonight, em 2011.
Essa historinha reflete o que é o Improviso dentro do Círculo Musical da Construção de Soluções:
“A capacidade de resolver o problema com os recursos disponíveis, ou como em um solo, pegar um outro caminho e depois voltar para a estrada principal”.
Prince sabia quem era a Misty Copeland e que ela seria plenamente capaz de entregar algo lindo no show. Mesmo fora da zona de conforto, Misty também sabia que conseguiria fazer o que foi pedido. O repertório amplo, as horas e horas de prática, e o suporte daquelas pessoas que dividem o palco são o alicerce para o improviso.
Muito além de apagar incêndios
Se eu lesse isso há alguns anos, ficaria incrédulo. Para mim, entendia a improvisação como uma forma “afobada” de resolução de problemas, “a única saída possível”. Por exemplo:
- Em 2003, a luz acabou no meio de um show do Venal, minha banda da época. A maneira que encontrei para manter o público animado foi tocando o groove de “Baba Baby” da Kelly Key. A banda cantou alto para o público cantar junto. Funcionou.
- Em 2014, descobri que iria conduzir uma reunião em outro idioma no momento que entrei na sala. Nunca havia liderado um encontro em outra língua que não o português. Fiz uma condução travada, protocolar e que só não foi horrível porque contei com a ajuda das pessoas presentes para fazer o trabalho. Também deu certo.
Tocar jazz foi o caminho que encontrei para perceber como o Improviso significa não somente uma forma de apagar um incêndio, mas também um mecanismo de experimentação, de expressão e de construção em conjunto. Entender isso foi fundamental para ressignificar alguns momentos da minha jornada e mudar minha forma de trabalhar, seja como músico e/ou também profissional de educação corporativa.
Outras definições de improviso
No livro “Something to Food About”, o baterista, produtor e diretor Ahmir “Questlove” Thompson entrevistou chefs de cozinha sobre processo criativo. Ali, Questlove conta que “os artistas de jazz tocavam as mesmas músicas noite após noite. A habilidade de achar variações sutis a cada noite, sem sacrificar a essência da música, foi o que os tornou grandes”. O improviso significa inovação incremental perante um mundo em constante mudança. (Falei desse livro aqui)
Um mundo em constante mudança também exige múltiplas habilidades. Em “Yes to the Mess: Surprising Leadership Lessons from Jazz“, o autor Frank J. Barrett afirma que as organizações precisam de um “grupo de especialistas diversos vivendo em um ambiente caótico e turbulento; tomando decisões rápidas e irreversíveis; altamente interdependentes uns dos outros para interpretar informações imperfeitas e incompletas; dedicados à inovação e à criação de novidades”. Isso é uma banda de jazz, na definição de Barrett.
Essa foi a primeira vez que vi um contraponto à frase do Peter Drucker, o guru da administração, que afirmava: “o líder empresarial do século XXI é como um maestro de orquestra que, seguindo uma partitura prescrita, extrai grandes performances de uma orquestra não necessariamente composta por grandes músicos”.
Dos palcos aos escritórios
No jazz, improvisar está nas regras do jogo: fazer um solo e experimentar novos caminhos e linguagens para isso. Vindo das experiências no pop, no rock e no blues, estar em evidência dessa forma não era algo comum para mim. Eu dominava os fundamentos essenciais: o suporte e o compromisso com as pessoas dentro e fora do palco. Porém, a rotatividade do papel de líder era a grande novidade.
Ser o solista significa fazer algo interessante, musical, que mantenha a banda e o público atentos e animados. Isso exige prática e repertório. Mas, se pararmos para pensar, não é tão diferente de uma reunião de trabalho, especialmente aquelas com muitas áreas envolvidas. É necessário estar preparado para a sua hora de falar. A diferença é que no palco, não há espaço para a desconexão com o grupo. A partir do momento que entrego meu solo (e o papel de líder) para outra pessoa, sigo atento para apoiá-la. Essa versão de “Windows” do Chick Corea, interpretada pela minha banda de jazz em São Paulo, mostra essas transições:
Improvisar também significa colaborar. Nos dois momentos, é preciso ter presença e intenção. Na falta desses elementos, o solo se perde e a banda se desarticula. Com esses elementos presentes, criamos vínculos de confiança e colaboração.
Improviso na prática
Pegue o que Frank Barrett disse e perceba como os ambientes de trabalho atuais exigem que estejamos improvisando a todo momento. O desafio é ter habilidades em nossa caixa de ferramentas que nos permite ficarmos confiantes para experimentar, inovar, ouvir opiniões e resolver problemas.
No aspecto pessoal, comecei a ficar confortável a partir de pequenos ajustes em minha prática:
- No trabalho, comecei a anotar/roteirizar algumas falas, especialmente aquelas em grandes grupos, para manter a atenção das pessoas, coesão e clareza;
- Nos solos de bateria, diminuí a economia e repetição de notas, criando variações para deixar o solo mais interessante a partir do momento que fiquei mais confortável com o papel.
Coletivamente, comecei a reconhecer e valorizar quando o Improviso apareceu. Seja participando de reuniões e projetos que envolviam áreas completamente distintas da organização, como as reuniões da WorldSkills; fazendo apresentações que exigiram ajuste de rota em tempo real no Centro Lemann, aprendendo e ouvindo com pessoas que têm pontos de vista bem divergentes dos meus nas reuniões de conselho que participo. A escuta, a presença e a colaboração sempre estiveram presentes para resolver problemas, desenhar soluções e gerar ideias a partir das informações disponíveis e do repertório dos presentes.
Na música, um exemplo ideal
Um dos melhores exemplos de tudo o que falamos está no vídeo abaixo. A banda do baixista Marcus Miller faz um cover improvisado de “Rehab”, canção clássica de Amy Winehouse. Na edição 2007 do festival holandês North Sea Jazz Festival, Miller e sua banda precisaram cobrir a ausência de Amy, que não pôde fazer o show. Algumas pessoas apareceram como convidadas: o DJ Logic, a saxofonista Candy Dulfer e o também saudoso trompetista Roy Hargrove. O resultado foi esse:
Observem como a música vai se desenvolvendo, com o público em êxtase, sem seguir uma estrutura rígida. São vários os momentos de construção:
- Ao perceber que os metais aprenderam a estrutura da música, Marcus – que começa o show tocando clarone – joga a partitura no chão;
- Ele estende os compassos de solo a partir de Roy Hargrove.
- Já no fim do seu solo de baixo, Marcus sinaliza o final da música, mas a banda demora algumas notas para perceber. O erro não compromete em nada o resultado final.
Em pouco mais de seis minutos, aquelas pessoas construíram um momento incrível com os recursos disponíveis, pegaram vários caminhos para depois retornarem à estrada principal. Fizeram isso com tranquilidade, pelos mesmos motivos de Misty Copeland no começo do texto: repertório amplo, as horas e horas de prática e o suporte de quem estava dividindo o palco.